Afinal, o que é ser cidadão?
Ser cidadão é ter direito à vida, à liberdade, à propriedade,
à igualdade perante a lei: é, em resumo, ter direitos civis.
É também participar no destino da sociedade, votar, ser votado, ter direitos políticos.
Os direitos civis e políticos não asseguram
a democracia sem os direitos sociais, aqueles que garantem
a participação do indivíduo na riqueza coletiva: o direito à educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde,
a uma velhice tranquila.
Exercer a cidadania plena é ter direitos civis,
políticos e sociais, fruto de um longo processo histórico
que levou a sociedade ocidental a conquistar
parte desses direitos.
Cidadania não é uma definição estanque, mas um conceito histórico, o que significa que seu sentido varia no tempo
e no espaço. É muito diferente ser cidadão na Alemanha,
nos Estados Unidos ou no Brasil (para não falar dos países
em que a palavra é tabu), não apenas pelas regras
que definem quem é ou não titular da cidadania (por direito territorial ou de sangue), mas também pelos direitos e deveres distintos que caracterizam o cidadão em cada um dos Estados-nacionais contemporâneos.
Mesmo dentro de cada Estado-nacional o conceito e a prática
da cidadania vêm se alterando ao longo dos últimos duzentos
ou trezentos anos.
Isso ocorre tanto em relação a uma abertura maior ou menor
do estatuto de cidadão para sua população (por exemplo,
pela maior ou menor incorporação dos imigrantes à
cidadania), ao grau de participação política de diferentes grupos (o voto da mulher, do analfabeto), quanto aos direitos sociais,
à proteção social oferecida pelos Estados aos que dela necessitam.
A aceleração do tempo histórico nos últimos séculos e a conseqüente rapidez das mudanças faz com que aquilo que
num momento podia ser considerado subversão perigosa da ordem, no seguinte seja algo corriqueiro, “natural” (de fato,
não é nada natural, é perfeitamente social).
Não há democracia ocidental em que a mulher não tenha,
hoje, direito ao voto, mas isso já foi considerado absurdo, até muito pouco tempo atrás, mesmo em países tão desenvolvidos
da Europa como a Suíça.
Esse mesmo direito ao voto já esteve vinculado à propriedade
de bens, à titularidade de cargos ou funções, ao fato de se pertencer ou não a determinada etnia etc.
Não se pode, portanto, imaginar uma seqüência única, determinista e necessária para a evolução da cidadania em
todos os países (a grande nação alemã não instituiu o
trabalho escravo, a partir de segregação racial do Estado, em pleno século XX, na Europa?).
A cidadania instaura-se a partir dos processos de lutas que culminaram na Declaração dos Direitos Humanos,
dos Estados Unidos da América do Norte, e na Revolução Francesa.
Esses dois eventos romperam o princípio de legitimidade
que vigia até então, baseado nos deveres dos súditos,
e passaram a estruturá-lo a partir dos direitos do cidadão.
Desse momento em diante, todos os tipos de luta foram
travados, para que se ampliasse o conceito e a prática de cidadania e o mundo ocidental o estendesse para mulheres, crianças, minorias nacionais, étnicas, sexuais, etárias.
Nesse sentido, pode-se afirmar que, na sua acepção mais
ampla, cidadania é a expressão concreta do exercício da democracia.
Apesar da importância do tema e do significado da discussão sobre a cidadania não tínhamos, até agora, um livro
importante sobre o tema, razão pela qual há cerca de dois
anos começamos a organizar uma obra consistente sobre
Quem quer que escrevesse sobre o assunto,
recorria ao sociólogo inglês T. H. Marshall, autor de um texto básico, mas que não tinha a pretensão de ser uma história da cidadania.
De resto, achamos importante mostrar que a
sociedade moderna adquiriu um grau de complexidade muito grande a ponto de a divisão clássica dos direitos do cidadão
em individuais, políticos e sociais não dar conta sozinha da realidade.
Nossa proposta foi a de organizar um livro de história social,
no sentido de não fazer um estudo do passado pelo passado, muito menos do passado para justificar eventuais concepções
pré-determinadas sobre o mundo atual.
Queríamos, isto sim, estimular a produção de textos cuidadosamente pesquisados, mas que se propusessem a
dialogar com o presente.
Não é por acaso que os textos dão
conta de um processo, um movimento lento, não linear, mas perceptível, que parte da inexistência total de direitos para a existência de direitos cada vez mais amplos.
Sonhar com cidadania plena em uma sociedade pobre, em
que o acesso aos bens e serviços é restrito, seria utópico. Contudo, os avanços da cidadania, se têm a ver com a riqueza
do país e a própria divisão de riquezas, dependem também
da luta e das reivindicações, da ação concreta dos indivíduos.
Ao clarificar essas questões, este livro quer participar da discussão sobre políticas públicas e privadas que podem
afetar cada um de nós, na qualidade de cidadãos engajados.
Afinal, a vida pode ser melhorada com medidas muito simples
e baratas, ao alcance até de pequenas prefeituras, como proibição de venda de bebidas alcoólicas a partir de certo
] horário, controle de ruídos, funcionamento de escolas como centros comunitários no final de semana, opções de lazer em bairros da periferia, estímulo às manifestações culturais das diferentes comunidades, e muitas outras. Sem que isso
implique abrir mão de uma sociedade mais justa, igualitária, com menos diferenças sociais, é evidente.
História da Cidadania já surge, portanto, como obra de referência. Ao organizar a discussão sobre um assunto de
que tanto se fala e tão pouco se sabe, ao estimular a produção
de textos de intelectuais de alto nível, o livro dá conteúdo a um conceito esvaziado pelo uso indevido, e propicia uma reflexão sólida e conseqüente.
JAIME PINSKY
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