sábado, 16 de janeiro de 2016

HISTÓRIA DA CIDADANIA








Afinal, o que é ser cidadão?
Ser cidadão é ter direito à vida, à liberdade, à propriedade,
 à igualdade perante a lei: é, em resumo, ter direitos civis.
 É também participar no destino da sociedade, votar, ser votado, ter direitos políticos.
 Os direitos civis e políticos não asseguram
 a democracia sem os direitos sociais, aqueles que garantem
 a participação do indivíduo na riqueza coletiva: o direito à educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde,
 a uma velhice tranquila. 
Exercer a cidadania plena é ter direitos civis,
 políticos e sociais, fruto de um longo processo histórico 
que levou a sociedade ocidental a conquistar
 parte desses direitos.
Cidadania não é uma definição estanque, mas um conceito histórico, o que significa que seu sentido varia no tempo
 e no espaço. É muito diferente ser cidadão na Alemanha, 
nos Estados Unidos ou no Brasil (para não falar dos países 
em que a palavra é tabu), não apenas pelas regras
 que definem quem é ou não titular da cidadania (por direito territorial ou de sangue), mas também pelos direitos e deveres distintos que caracterizam o cidadão em cada um dos Estados-nacionais contemporâneos. 
Mesmo dentro de cada Estado-nacional o conceito e a prática 
da cidadania vêm se alterando ao longo dos últimos duzentos
 ou trezentos anos. 
Isso ocorre tanto em relação a uma abertura maior ou menor
 do estatuto de cidadão para sua população (por exemplo,
 pela maior ou menor incorporação dos imigrantes à 
cidadania), ao grau de participação política de diferentes grupos (o voto da mulher, do analfabeto), quanto aos direitos sociais, 
à proteção social oferecida pelos Estados aos que dela necessitam.
A aceleração do tempo histórico nos últimos séculos e a conseqüente rapidez das mudanças faz com que aquilo que 
num momento podia ser considerado subversão perigosa da ordem, no seguinte seja algo corriqueiro, “natural” (de fato, 
não é nada natural, é perfeitamente social).
 Não há democracia ocidental em que a mulher não tenha, 
hoje, direito ao voto, mas isso já foi considerado absurdo, até muito pouco tempo atrás, mesmo em países tão desenvolvidos 
da Europa como a Suíça. 
Esse mesmo direito ao voto já esteve vinculado à propriedade
 de bens, à titularidade de cargos ou funções, ao fato de se pertencer ou não a determinada etnia etc. 
Não se pode, portanto, imaginar uma seqüência única, determinista e necessária para a evolução da cidadania em
 todos os países (a grande nação alemã não instituiu o
 trabalho escravo, a partir de segregação racial do Estado, em pleno século XX, na Europa?). 
A cidadania instaura-se a partir dos processos de lutas que culminaram na Declaração dos Direitos Humanos, 
dos Estados Unidos da América do Norte, e na Revolução Francesa. 
Esses dois eventos romperam o princípio de legitimidade
 que vigia até então, baseado nos deveres dos súditos,
 e passaram a estruturá-lo a partir dos direitos do cidadão.
 Desse momento em diante, todos os tipos de luta foram
 travados, para que se ampliasse o conceito e a prática de cidadania e o mundo ocidental o estendesse para mulheres, crianças, minorias nacionais, étnicas, sexuais, etárias.
 Nesse sentido, pode-se afirmar que, na sua acepção mais
 ampla, cidadania é a expressão concreta do exercício da democracia.
Apesar da importância do tema e do significado da discussão sobre a cidadania não tínhamos, até agora, um livro 
importante sobre o tema, razão pela qual há cerca de dois 
anos começamos a organizar uma obra consistente sobre
Quem quer que escrevesse sobre o assunto,
 recorria ao sociólogo inglês T. H. Marshall, autor de um texto básico, mas que não tinha a pretensão de ser uma história da cidadania.
 De resto, achamos importante mostrar que a 
sociedade moderna adquiriu um grau de complexidade muito grande a ponto de a divisão clássica dos direitos do cidadão
 em individuais, políticos e sociais não dar conta sozinha da realidade.
Nossa proposta foi a de organizar um livro de história social,
 no sentido de não fazer um estudo do passado pelo passado, muito menos do passado para justificar eventuais concepções
 pré-determinadas sobre o mundo atual.
 Queríamos, isto sim, estimular a produção de textos cuidadosamente pesquisados, mas que se propusessem a
 dialogar com o presente.
 Não é por acaso que os textos dão 
conta de um processo, um movimento lento, não linear, mas perceptível, que parte da inexistência total de direitos para a existência de direitos cada vez mais amplos.
Sonhar com cidadania plena em uma sociedade pobre, em
 que o acesso aos bens e serviços é restrito, seria utópico. Contudo, os avanços da cidadania, se têm a ver com a riqueza 
do país e a própria divisão de riquezas, dependem também 
da luta e das reivindicações, da ação concreta dos indivíduos. 
Ao clarificar essas questões, este livro quer participar da discussão sobre políticas públicas e privadas que podem 
afetar cada um de nós, na qualidade de cidadãos engajados.
 Afinal, a vida pode ser melhorada com medidas muito simples
 e baratas, ao alcance até de pequenas prefeituras, como proibição de venda de bebidas alcoólicas a partir de certo
] horário, controle de ruídos, funcionamento de escolas como centros comunitários no final de semana, opções de lazer em bairros da periferia, estímulo às manifestações culturais das diferentes comunidades, e muitas outras. Sem que isso
 implique abrir mão de uma sociedade mais justa, igualitária, com menos diferenças sociais, é evidente.
História da Cidadania já surge, portanto, como obra de referência. Ao organizar a discussão sobre um assunto de
 que tanto se fala e tão pouco se sabe, ao estimular a produção
 de textos de intelectuais de alto nível, o livro dá conteúdo a um conceito esvaziado pelo uso indevido, e propicia uma reflexão sólida e conseqüente.
JAIME PINSKY

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